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Escolas podem negar matrículas a pessoas com deficiência?

A despeito do crescimento no número de matrículas de pessoas com deficiência em escolas regulares, muitas famílias ainda encontram dificuldades em encontrar escolas para seus filhos

Mariana Rosa é mãe de uma criança com deficiência. Quando decidiu que a filha deveria começar na escola, ela ouviu de muitos lugares que “não trabalhavam com crianças desse tipo”. Foram muitas negativas até conseguir matricular a menina, que hoje tem 10 anos e estuda em uma escola regular. 

Antes mesmo de ingressar nessa busca, a jornalista e pesquisadora precisou lidar com os próprios preconceitos. Ela não achava que a filha poderia estar em uma escola comum pelo fato de Alice não se comunicar verbalmente e usar cadeira de rodas. 

“Eu nunca tinha convivido com alguém assim, então na minha cabeça ela não era uma criança ‘escolarizável’. Eu me dei conta de que isso era um capacitismo internalizado”, reflete. Mariana aos poucos foi entendendo que o direito de ir à escola era da criança e não da família. 

Negar matrícula é inconstitucional e também um crime. O projeto de lei 9133/17 prevê que escolas que se recusem a matricular alunos – incluindo os com deficiência – tenham o credenciamento suspenso pelo poder público. 

O acesso de crianças com deficiências às escolas está garantido por uma série de mecanismos legislativos, que impedem que escolas decidam não aceitar matrículas desse público. 

A lei 7853, de 24 de outubro de 1989, prevê multa e reclusão de dois a cinco anos para a quem “recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência”, conforme consta no artigo 8º, inciso I.

Mariana destaca que quando a escola diz não receber alunos com deficiência, ela está reproduzindo um pensamento da década de 1950, quando as instituições classificavam quais inteligências correspondiam com o que era considerado ideal e quais não. 

“Para nós foi bem difícil, mesmo na educação infantil”, relata.

Mudanças estruturais 

A promulgação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, em 2008, reforçou a necessidade de cumprimento do direito à educação, previsto na constituição federal de 1988 e na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). A legislação também marcou uma mudança na inserção de crianças com deficiência em classes regulares, e uma diminuição nas classes especiais.

Segundo dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), a partir do final de 2007 e início de 2008 observou-se uma virada no número de matrículas nestas duas modalidades. Em 2006, por exemplo, havia 375.488 crianças matriculadas na educação especial – esse número caiu para 252.687 em 2009. Em contrapartida, as matrículas foram de 325.136 para 387.031 nos respectivos anos. 

Contudo, apesar dessa mudança, Mariana Rosa, que atualmente é mestranda na Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisa justamente as relações entre educação inclusiva e pessoas com deficiência, destaca que algumas escolas particulares ainda conseguem burlar a legislação, apresentando outros argumentos como falta de vagas ou que acabou a cota de estudantes com deficiência. 

“As escolas públicas são obrigadas a matricular seu filho. Se não tiver vaga, elas podem te direcionar para uma outra, mas a matrícula é feita. Quando a gente olha os percentuais, as instituições privadas – que também são obrigadas a realizar as matrículas – ainda estão recebendo menos estudantes com deficiência”, diz. 

A pesquisadora conta que já recebeu diversos relatos de famílias que perceberam uma postura distinta da escola no momento da matrícula. Quando a instituição não sabe que se trata de uma criança com deficiência, há vagas, mas estas mesmas somem quando as famílias informam que é um estudante com deficiência. 

Mariana também diz que outra ação comum é a cobrança a mais dessas instituições para receber alunos com deficiência, o que vai contra a lei 7853/89 citada acima. 

Olhar para a diversidade 

Regiane Silva, psicóloga e orientadora educacional, aponta que falta também às  escolas entenderem que os estudantes são diversos, tenham eles deficiência ou não. 

“A gente verifica uma resistência em entender que quando estamos falando de educação, estamos nos referindo à diversidade, à equidade. O professor que está em sala de aula sabe que cada pessoa tem seu perfil, e que o estudante com deficiência é mais um aluno na turma”, destaca. 

Ela pontua que é importante sempre colocar a pessoa à frente da deficiência, e não o contrário. “A deficiência é uma característica na vida da pessoa, mas ela não é só isso”, diz. 

Quando se trata de inclusão, a psicopedagoga considera que as escolas precisam incorporar novas formas de atuar no ambiente de aprendizagem, acrescentando metodologias de ensino atrativas, encarando as pessoas como aprendizes para a vida toda e fugindo dos modelos tradicionais que nem sempre contribuem com a diversidade. 

Essa postura, centrada no que é tradicional, é o que, para a especialista, ajuda a responder o porquê de muitas escolas não receberem crianças com deficiência, argumentando a necessidade de grandes mudanças – estruturais ou de conteúdo. 

Conhecimento da legislação 

Como citado anteriormente, há diversos mecanismos previstos por lei que garantem o acesso de pessoas com deficiência à educação. Contudo, há um outro entrave que impede essa efetivação: o desconhecimento. 

“A gente tem uma política pública que deveria estar funcionando, mas como isso chega às escolas e aos núcleos de aprendizagem?”, questiona Regiane. Ela afirma que primeiro é preciso perguntar se essa informação é acessível e, em seguida, como ela está sendo trabalhada. 

É  necessário que haja ações efetivas para garantir a informação, acompanhadas de prática para sedimentar a inclusão nas escolas. “A gente tem um problema sistêmico. Não é um único ator que precisa ser preparado.”

Esse desconhecimento afeta as famílias de pessoas com deficiência. Pensando nisso, o Instituto Cáue, organização sem fins lucrativos que Mariana Rosa ajudou a fundar, realiza oficinas com familiares de pessoas com deficiência para capacitá-los a entender melhor a educação inclusiva e como exigir seus direitos. 

Os ciclos formativos são realizados por meio de  10 encontros que apresentam um panorama sobre a deficiência no Brasil, leis que regem os direitos da pessoa com deficiência, o que é tecnologia assistiva, o atendimento educacional especializado, entre outros tópicos. 

“A gente passa dois meses debatendo bastante. É  muito bonito ver como as famílias vão se apropriando dessas informações e compreendendo aquilo que não é adequado ou que tinha deixado passar, ou aquilo que precisa ser levado no Ministério Público ou no Conselho de Educação. Eu acho que elas vão se apropriando disso e ocupando os espaços no sentido de fazer essas reivindicações”, aponta Mariana. 

Muitas famílias, por esse desconhecimento, acabam entrando em situações que não precisariam enfrentar e até mesmo tornam-se vítimas de pessoas mal-intencionadas ou desinformadas. Como exemplo, a pesquisadora cita que nem sempre a melhor opção é judicializar – seja com relação à matrícula, seja devido a algo que a criança com deficiência viveu dentro da escola. 

“As famílias estão geralmente fragilizadas, elas acabam comprando isso e entrando numa coisa meio litigiosa com a escola, quando na verdade a gente precisa ajudar a escola a construir o que precisa ser feito”, pondera. 

A jornalista ainda ressalta que não existe escola ideal e, por isso, dialogar é fundamental. Tomar uma ação mais drástica como a judicialização, por exemplo, somente quando todos os recursos de diálogo se esgotarem.

Fonte: Portal Porvir - Ruam Oliveira

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