Alfabetização integral vai além da leitura e da escrita, abrangendo múltiplas linguagens
A alfabetização integral amplia o ensino tradicional ao incluir linguagens como a matemática, a digital, a científica e a artística, promovendo uma formação completa e alinhada à BNCC e aos desafios do mundo atual
Certa vez, Kátia Smole, diretora do instituto Reúna, foi ao banco. Ao chegar ao local, conta ter encontrado uma menina diante do seguinte dilema: precisava sacar R$ 500, mas não conseguia. O motivo, segundo a garota, era que o caixa só possuía notas de R$ 50 e de R$ 20. Kátia então decidiu ajudá-la com um processo de soma. Em outra ocasião, a diretora do Reúna, que também já atuou como professora de matemática na rede pública de São Paulo, conta que foi comprar sorvetes e gastou R$ 20, dando à atendente uma nota de R$ 50. Como resposta, recebeu um pedido: “Você me ajuda a calcular o troco? Estou sem calculadora”.
Kátia compartilhou essas histórias do cotidiano para reforçar um ponto: a urgência da alfabetização matemática. Durante o Seminário Alfabetização 360°: Políticas e práticas para uma alfabetização integral, organizado pelo Instituto Ayrton Senna, a representante do Instituto Reúna destacou que não é possível avançar na área sem incluir a matemática nesse processo.
“Não faltam dados para a gente dizer que matemática é um desastre absoluto no nosso país”, disse. E o exemplo de uma ida ao banco não é caso isolado. No último PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), avaliação aplicada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para medir o desempenho de estudantes de 15 e 16 anos em matemática, leitura e ciências, o Brasil ocupou a 65ª posição em matemática.
No Brasil, apenas 27% dos estudantes alcançaram o nível 2 em matemática no PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), considerado o patamar mínimo de proficiência esperada. Nesse nível, os alunos conseguem aplicar procedimentos básicos em situações do cotidiano e contextos familiares.
A média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é de 69%. A avaliação classifica os estudantes em uma escala que vai do nível 1 ao nível 6, sendo este último o mais alto, reservado àqueles que demonstram domínio avançado de raciocínio matemático e resolução de problemas complexos, raciocinar logicamente, comunicar com clareza e resolver problemas inéditos com criatividade.
“O sentido mais profundo da alfabetização matemática está em compreender, utilizar e comunicar conceitos matemáticos em situações dentro e fora da escola. Não se trata de memorizar contas. Trata-se de pensar matematicamente, entender o que os conceitos dizem, resolver problemas reais”, afirmou a educadora.
Kátia considera que, quando o assunto é alfabetização, até mesmo os dados relacionados à matemática devem ser interpretados sob outra perspectiva.
“Nos acostumamos com os dados. A cada edição do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica, conjunto de provas aplicadas em larga escala para estudantes), repetimos: poucos estudantes do 5º ano dominam matemática; menos ainda no 9º ano; e a situação é crítica no ensino médio. É diferente da alfabetização em língua materna, onde conseguimos estabelecer políticas públicas, pactos e programas. Vemos estados e municípios comprometidos com a alfabetização das crianças. Mas não temos nenhum pacto para garantir que os jovens aprendam matemática no tempo certo da escola.”
Alfabetização integral dos estudantes
A visão de Kátia vai ao encontro à proposta do painel, que buscava destacar elementos que contribuem para uma alfabetização plena. Na abertura da atividade, Inês Kisil Miskalo, diretora de educação do Instituto Ayrton Senna, conceituou a alfabetização 360º, que se refere a um esforço para alfabetizar para além da simples decodificação de símbolos.
A concepção apresentada por ela prevê uma alfabetização que abrange diferentes linguagens: digital, científica, artística, corporal e matemática. Ao ampliar o conceito tradicional de alfabetização, essa proposta contribui para o desenvolvimento de competências essenciais previstas na BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e promove uma educação mais significativa e contextualizada.
“A alfabetização, até pouco tempo atrás, era entendida apenas como a apropriação de códigos — a mecânica da relação grafema-fonema. Posteriormente, passou-se a falar em letramento, compreendendo a alfabetização também como uma prática social. Ao pensarmos em uma alfabetização plena, reunimos esses dois elementos: dominar o código e utilizá-lo em contextos significativos, sociais, comunicativos”, destacou Inês.
A educadora defende que os tempos atuais exigem dos estudantes habilidades diversas de comunicação e expressão. Com o avanço da tecnologia e da inteligência artificial, os estudantes vão necessitar cada vez mais de ferramentas que os ajudem a se colocar no mundo.
“Esse ambiente virtual traz consigo a discussão entre o que é real e o que é simulado, o que é verdade e o que é mentira. Exige um posicionamento cidadão: saber escolher, dizer ‘quero’, ‘não quero’, ‘acredito’, ‘não acredito’”, afirmou.
Diferentes dimensões de alfabetização
A alfabetização voltada para a língua materna exige conhecimentos em leitura, escrita e oralidade. No entanto, sob a perspectiva de uma alfabetização integral, o desenvolvimento de outras linguagens também importante. A docente exemplifica como essas outras esferas devem ser levadas em consideração no momento de alfabetizar uma criança:
- A linguagem científica, por exemplo, estimula a curiosidade, o pensamento lógico e o método científico, levando a criança a fazer perguntas, testar hipóteses, aceitar a frustração e trabalhar em equipe.
- A linguagem artística desenvolve emoções, criatividade e cultura. Numa peça teatral, por exemplo, a criança pensa no texto, no cenário, no vestuário, compartilha espaços físicos e exercita a imaginação e a expressão simbólica. É também nessa linguagem que se manifestam ideologias, sentimentos e representações culturais.
- Já a linguagem digital está relacionada ao pensamento computacional, mas não depende exclusivamente de equipamentos digitais. “Trata-se de uma estrutura mental que pode ser desenvolvida com papel e lápis. O importante é preparar a criança para esse mundo digital, com ética, criticidade e autonomia”, destacou.
- A linguagem corporal, muitas vezes, é mais expressiva do que a verbal. O olhar, o sorriso e os gestos comunicam pensamentos e sentimentos. Crianças precisam aprender a transmitir suas ideias também por esse meio, em aulas de teatro, música ou educação física, por exemplo.
Em relação à linguagem matemática, Inês também afirmou que ela tem sido uma dimensão, por vezes, deixada de lado. ”Não basta saber ler e escrever: é preciso entender o sistema decimal, fazer cálculos, interpretar problemas”, disse Inês. Além de contribuir com o desenvolvimento do raciocínio lógico, alfabetizar para a matemática também é uma maneira de estimular habilidades práticas como fazer orçamentos, calcular descontos ou tomar decisões financeiras.
Todas essas dimensões constituem o que se entende como uma alfabetização integral, que, segundo as especialistas presentes no evento, é essencial para além das tarefas de sala de aula.
“A vida não acontece compartimentada, como muitas vezes a escola propõe — com horários separados para português, matemática, ciências. A vida é integrada, simultânea, complexa. A escola precisa acompanhar essa lógica”, afirmou Inês.
Olhar para o cérebro
Todas essas ações, segundo Inês, demandam intencionalidade e não são processos naturais. Ou seja, demandam sistematização, planejamento e organização – domínios que são conquistados na sala de aula, com a ajuda de professores e por meio de mediação pedagógica.
Ana Zuanazi, gerente de pesquisa do Instituto Ayrton Senna, explica que os processos de leitura e escrita ativam áreas muito específicas do cérebro, como as relacionadas à atenção e ao visual. Contudo, há também uma região cerebral que se ativa particularmente no processo de alfabetização.
“Diferente da habilidade de andar, que se desenvolve naturalmente em bebês com estímulos mínimos, a leitura e a escrita exigem mediação intencional. Sem essa mediação (do professor, do alfabetizador), o cérebro não desenvolve, por si só, a capacidade de reconhecer e diferenciar letras”, explica.
Para ela, essas recentes descobertas apontam que há duas importantes implicações: a necessidade de estímulos adequados e a importância dos educadores nesse processo. Além dos aspectos cognitivos, Ana aponta que o desenvolvimento socioemocional e o ambiente escolar influenciam diretamente no desejo dos estudantes em aprender.
“Um ambiente acolhedor motiva, tranquiliza e encoraja. Para a criança que enfrenta dificuldades com leitura ou com números, o ambiente pode ser o fator decisivo entre persistir ou desistir”, afirma. “É importante lembrar que, aos 6 ou 7 anos, a criança ainda está desenvolvendo a capacidade de regular suas emoções. O ambiente escolar funciona, muitas vezes, como um regulador externo. Os professores, por exemplo, têm um papel fundamental na mediação emocional e motivacional. Suas expectativas, acolhimento e incentivo fazem diferença no engajamento da criança”, conclui.
Fonte: Portal Porvir - Ruam Oliveira