Violência online gera crises emocionais na escola. Como identificar e agir?
Impactos causados pelas redes sociais são refletidos no comportamento dos alunos. Como intervir e apoiar ações de apoio emocional?
Crianças e adolescentes estão cada vez mais expostos a fenômenos preocupantes na internet, que impactam diretamente o relacionamento interpessoal e a socialização. O impacto alcança a dinâmica das salas de aula e do ambiente escolar, com aumento da violência e da exclusão entre os estudantes, como demonstrado em uma publicação recente do Porvir.
Pesquisas do GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral) – que desenvolve linhas de pesquisa na Unesp (Universidade Estadual Paulista) e na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) indicam que o bullying tem sido uma das principais causas desse sofrimento, com destaque para as altas taxas de medo, ansiedade e ideação suicida entre os jovens.
Esses efeitos se agravam com casos como o recente vídeo do youtuber e humorista Felca (Felipe Bressanim Pereira), que discute a ‘adultização’ precoce de menores na internet. Com milhões de seguidores, Felca denuncia a sexualização precoce e destaca como esse fenômeno tem afetado a saúde mental dos jovens. O vídeo, que gerou grande repercussão com mais de 36 milhões de visualizações, reforça a urgência de discutir e proteger a infância e a adolescência no ambiente digital.
A adultização e a erotização de crianças são apenas um dos riscos aos quais os jovens estão expostos no ambiente online. O “Guia sobre usos de dispositivos digitais”, lançado pelo governo federal neste ano, aborda a complexidade do assunto no Brasil.
O material mostra como o uso inadequado de tecnologias traz como consequência o sofrimento mental e comportamental, manifestado das seguintes maneiras:
• Ansiedade, depressão e agressividade;
• Comportamentos impulsivos e dificuldades de autorregulação;
• Problemas de autoimagem e transtornos alimentares;
• FoMO (do inglês Fear of Missing Out), o desejo de estar sempre conectado;
• Dependência tecnológica.
A percepção dos educadores
Essas questões aparecem cada vez mais em sala de aula, com professores relatando comportamentos como ansiedade e agressividade entre os alunos. Para entender melhor a situação, ouvimos educadores das comunidades do Porvir no WhatsApp, que compartilharam suas principais percepções sobre o impacto do excesso de tecnologias no ambiente escolar, a violência online sofrida pelos estudantes e como a exposição a padrões inalcançáveis de aparência e imagem corporal nas redes sociais prejudica a saúde mental dos adolescentes.
“Além disso, há a questão de vestir crianças como adultas. Cada vez mais, elas se maquiam e fazem as unhas. Também falam sobre namoros de forma precoce, algo que muitos veem como normal”, comenta a professora Elierge Andrela dos Santos, de São Paulo (SP).
“A preocupação com o corpo desde cedo também é alarmante. Antigamente, não via crianças falando sobre emagrecer ou querendo treinar na academia. Hoje, isso é comum. E tudo isso é impulsionado pelo mercado. Esse mercado lucra com a venda de produtos promovidos nas redes sociais e por influenciadores”, complementa.
Para Janete Borges, professora formadora na DRE (Diretoria Regional de Educação) de Santa Bárbara, região metropolitana de Belém (PA), esse fenômeno não ocorre apenas nas escolas, mas também nas ruas. “Basta olhar as roupas para crianças em qualquer loja. Há quem compre, e, por isso, continuam a vender. Os responsáveis permitem o acesso precoce à tecnologia, sem controle. O mercado, sabendo disso, se aproveita disso. O capitalismo é implacável”, opina.
De acordo com a educadora, é preciso realizar um trabalho em rede. “A escola não trata do assunto de forma adequada. As famílias também não, e os Conselhos Tutelares, muito menos. Isso se torna uma bola de neve que desaba sobre nossas crianças”, comenta. O professor de educação física André Fonseca dos Santos, de Itaquaquecetuba (SP), complementa: “Hoje em dia, muitos alunos não querem participar das aulas de educação física para não bagunçar o cabelo ou tirar a calça jeans. Quando você chama os responsáveis para conversar, percebe que já não têm controle sobre a situação. Já ‘perderam a mão’”, complementa.
De acordo com a pesquisa TIC Kids Online 2024, 93% da população brasileira de 9 a 17 anos usa a internet, seja pelo celular, computador ou televisão. Estar atento ao que essa faixa etária consome é responsabilidade das famílias e dos adultos ao seu redor. O YouTube é acessado várias vezes ao dia por mais de 40% dessa população, com maior frequência entre crianças de 9 a 12 anos.
Desinformação e radicalização
Compreender os mecanismos de distribuição dessas informações prejudiciais é essencial para a proteção das crianças. Em 2023, o Porvir publicou o Guia Escola Livre de Ódio, um material que reúne conteúdos de referência, experiências e recursos voltados para o combate ao extremismo. O guia enfatiza a importância de entender como essas informações se espalham no ambiente digital.
Especialistas e educadores entrevistados para o especial destacam que, além de identificar esses conteúdos prejudiciais, é fundamental compreender os processos de sua disseminação para adotar medidas eficazes de prevenção.
A seguir, confira os principais efeitos da violência digital:
• Desinformação e radicalização: As redes sociais e jogos online podem servir como portais para a disseminação de desinformação, alimentando narrativas extremistas e teorias da conspiração. Esses ambientes atraem jovens vulneráveis, que, por meio de interações com conteúdos manipulados, são levados a se envolver em discursos de ódio e radicais. Plataformas como Roblox, Fortnite e Minecraft facilitam essa infiltração. Elas servem como ponto de contato para grupos extremistas, que, posteriormente, atraem os jovens para espaços menos monitorados, como o Telegram e o WhatsApp, onde a radicalização encontra espaço para se aprofundar.
• Câmaras de eco: O comportamento algorítmico nas redes sociais cria ambientes nos quais os usuários são expostos apenas a conteúdos que reforçam suas crenças, sem contrapontos. Isso resulta em uma “câmara de eco”, onde os jovens ficam presos em um ciclo de conteúdos violentos e radicalizados, o que pode distorcer completamente sua visão de mundo.
• Discursos de ódio: A disseminação de discursos de ódio, incluindo xenofobia, intolerância religiosa e misoginia, é uma estratégia que visa engajar pessoas emocionalmente. Esses discursos têm um impacto danoso, atingindo grupos específicos como negros, mulheres, pessoas LGBTQIAPN+ e outros. Esse tipo de conteúdo é facilmente compartilhado e propagado, devido à sua carga emocional.
• Teorias da conspiração: Muitas vezes, as teorias da conspiração são simplistas e não têm respaldo científico. Elas geram antagonismos entre o “bem” e o “mal”, criando uma sensação de missão heroica para os jovens que se envolvem. A internet oferece um espaço onde essas narrativas encontram um grande número de seguidores, ampliando o engajamento em torno de temas como negação de eventos históricos e ataques a movimentos sociais.
• Massacres e violência: Alguns jovens, influenciados por grupos extremistas, acabam se tornando admiradores de autores de massacres, o que resulta em publicações sobre possíveis ataques planejados e divulgados nas redes sociais antes de ocorrerem. A visibilidade dada a esses eventos, inclusive com símbolos neonazistas, é uma forma de “premiação” para os envolvidos, criando um ciclo de violência e radicalização.
Como reconhecer as violências?
Nem tudo se restringe ao ambiente online. Certas violências se manifestam nos corredores, nas conversas no pátio ou mesmo nas paredes dos banheiros escolares.
Para enfrentar essas situações de violência e narrativas de ódio, é fundamental nomeá-las e compreender sua conexão com questões históricas e estruturais da sociedade.
Abaixo, listamos algumas das principais violências presentes no ambiente online que costumam chegar ao dia a dia da escola.
• Racismo: O racismo é a crença ou convicção de superioridade que distingue, exclui, restringe e dá preferência a uma pessoa ou grupo com base na sua raça, cor, descendência ou origem nacional e étnica. O racismo gera desigualdades, adoecimento psíquico, problemas de aprendizagem e diversas formas de violência, impactando a qualidade de vida e a expectativa de vida da população não branca.
Exemplos:
• Xingamento com termos racistas, como “macaco”
• Comentário ofensivo sobre cabelos crespos
• Segregação dos praticantes de religião de matriz africana
• Misoginia: Ódio ou aversão às mulheres, que pode ser manifestado de diferentes formas, como a exclusão social, intimidação, silenciamento de opiniões e violência verbal, física, psicológica, moral, patrimonial e sexual. A misoginia é causada por uma cultura machista e sexista que reforça uma ideia de superioridade masculina.
Exemplos:
• Impedimento de praticar esportes por causa do gênero
• Listas que sexualizam e ofendem meninas, em grupos e redes sociais
• LGBTfobia: Ato, manifestação de ódio, preconceito, discriminação ou aversão contra pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexuais, assexuais, pansexuais e outros grupos. O termo é usado para abarcar diferentes formas de violência contra a comunidade LGBTQIAP+ em que a motivação principal é a sua identidade de gênero ou orientação sexual.
Exemplos:
• Ameaças de morte contra alunos gays
• Zombaria contra alunos trans
• Neonazismo: Reprodução de símbolos e ideais nazistas aplicados ao contexto atual. Baseado na defesa da supremacia racial e em uma visão de mundo deturpada, o neonazismo promove o ódio contra negros, judeus, homossexuais, comunistas, feministas e outros grupos.
Exemplos:
• Saudação nazista ou elogio à Adolf Hitler
• Desenho de suástica na mesa ou lousa
• Capacitismo: Preconceito ou discriminação de pessoas com deficiência. O capacitismo cria hierarquias a partir do que ele considera como normal e reforça um senso comum de que as pessoas com deficiência são inferiores ou incapazes de realizar determinadas atividades.
Exemplos:
• Deboche de aluno com deficiência intelectual
• Exclusão de alunos com deficiência física de atividades e brincadeiras
• Gordofobia: Repúdio, aversão ou preconceito contra pessoas gordas. A gordofobia é um estigma estrutural e cultural que pode se manifestar a partir de falas, atitudes, humilhações e representações negativas de corpos gordos. Esses comportamentos podem reforçar estereótipos e preconceitos que colocam a pessoa gorda em situações de exclusão social e de constrangimento.
Exemplos:
• Insinuações e comentários sobre o corpo de outros alunos
• Xingamento com termos gordofóbicos, como “baleia”
Apoio pedagógico
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Fonte: Portal Porvir - Redação