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Redes sociais são ralos de tempo, diz a neurocientista Suzana Herculano-Houzel

Em entrevista ao Porvir, Suzana Herculano-Houzel alerta: o maior inimigo da aprendizagem é a perda de tempo

A cena parece saída de um filme de ficção científica: imagine criar um método chamado “fracionador turbinado” que transforma pedaços de cérebros de animais em “sopas de células” para contar os neurônios, ou seja, as células nervosas responsáveis por receber, processar e transmitir informações? Em uma explicação simples, foi assim que a neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel revolucionou o estudo do cérebro humano.

Nos anos 2000, quando ainda atuava como pesquisadora na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Suzana, junto ao chefe colega Roberto Lent, revelou a exata contagem de 86 bilhões de neurônios no cérebro humano, desafiando a antiga estimativa de 100 bilhões, apresentada em 1979 pelo neurobiólogo canadense David Hubel e que se disseminou sem comprovação.

Sua investigação não parou por aí. Em 2015, ela e o físico Bruno Mota publicaram um artigo na revista Science, esclarecendo outro mistério da neurociência: a origem das dobras da parte mais externa e volumosa do cérebro, o córtex cerebral. 

E o trabalho de Suzana continua a impactar a ciência. Atualmente, além de ser professora da Universidade Vanderbilt, em Nashville (EUA), Suzana é a primeira editora-chefe do Journal of Comparative Neurology, o mais antigo periódico especializado em neurociência do mundo.

Em sua passagem por São Paulo, durante o Arco Day, evento de dois dias promovido pela Arco Educação, ela traduziu a ciência e o papel do cérebro no aprendizado para uma plateia de quase 2 mil gestores escolares. 

Para Suzana, a escola vai além de ser um simples espaço de transmissão de conhecimento. “A escola é onde aprendemos a usar o cérebro. E é graças à escola que deixamos de ser apenas Homo sapiens biológicos, como éramos há 200, 300 mil anos, e nos tornamos seres humanos modernos, competentes para os dias de hoje. A escola nos torna independentes, capazes de fazer o que queremos, de nos sentir no controle das nossas ações e da nossa vida.”

Nesta entrevista ao Porvir, Suzana destaca o conceito de tempo protegido no processo de aprendizagem, conceito que se refere ao período dedicado exclusivamente ao aprendizado, sem interrupções externas. Para a neurocientista, a escola é o ambiente ideal para proporcionar esse tempo protegido, fundamental para que as crianças aprendam a construir seu próprio conhecimento e se desenvolvam de maneira estruturada e eficaz. Ela também faz um alerta para os perigos da “preguiça mental” e do uso excessivo das redes sociais, que considera “ralos de tempo”. Confira:

Porvir: Você defende que a escola nos torna mais inteligentes, mas ainda existem muitos mitos relacionados à aprendizagem. Quais os principais?

Suzana Herculano-Houzel: O problema moderno, na minha opinião, começa com o que chamo de preguiça mental, que é um mal generalizado, um mal de quem tem cérebro. As pessoas tendem a buscar soluções rápidas, como decorar para passar na prova ou resolver problemas sem aprender a resolvê-los por conta própria. Isso é uma pena, porque é uma abdicação do cérebro, é abrir mão de usá-lo. 

Porvir: Como a preguiça mental afeta o cérebro e o aprendizado?

Suzana Herculano-Houzel: O cérebro é como um músculo: você só ganha aquilo que pratica. Não existe pílula mágica, nem um plug de transferência de conhecimento. Nós construímos conhecimento pela ação. Quem acredita que pode encontrar respostas rápidas no Facebook e nas redes sociais para resolver seus problemas escolares, por exemplo, está literalmente desperdiçando o potencial do seu cérebro. Está jogando o cérebro fora. Uma pena.

Porvir: E como a flexibilidade e plasticidade cerebral, que podem otimizar o ensino, são afetadas pelo impacto das telas?

Suzana Herculano-Houzel: O maior problema das telas, como redes sociais e jogos que não acrescentam nada, é que elas consomem o bem mais precioso que temos: o tempo. Tempo para usar o cérebro, para construir e descobrir coisas, olhar para fora e para dentro, fazer boas escolhas na vida. Construir conhecimento leva tempo. Aprender a fazer o que quer que seja leva leva tempo e esforço. O problema das telas é que elas são verdadeiros “ralos de tempo”. 

Porvir: Poderia explicar o conceito?

Suzana Herculano-Houzel: Redes sociais são feitas para serem literalmente ralos de tempo: quanto mais tempo jogamos fora, mais dinheiro os criadores dessas plataformas ganham. As telas são projetadas para fazer a gente passar mais tempo nelas. Mas eu defendo o bom uso da tecnologia, o uso pontual. Se você busca por algo, vá direto naquilo, de maneira específica. Caso queira se distrair com um jogo rápido, fique 10 minutos. Mas o cuidado necessário é não cair na armadilha do “ralo das telas”, onde você rola, rola, rola a tela e o conteúdo nunca acaba. Isso não traz nada de útil.

Porvir: E como isso afeta o cérebro?

Suzana Herculano-Houzel: Você perde tempo! O maior problema para o cérebro dos ralos das redes sociais, das telas inúteis, é a perda de tempo. Perder tempo significa, também, perder oportunidades. 

Porvir: Como usar bem a tecnologia? Como equilibrar esse acesso?

Suzana Herculano-Houzel: O uso inteligente da tecnologia é aquele que traz retorno, atinge nossos objetivos, serve aos nossos valores, nos torna mais inteligentes, traz informação útil e ajuda a tomar boas decisões. Isso é o que chamamos de uso inteligente. Porém, é importante ressaltar: qualquer pessoa com um cérebro está sujeita ao risco de sucumbir à preguiça mental. Faz parte da preguiça mental esperar que alguém faça algo para resolver os seus problemas, o que caracteriza o mau uso das telas e da tecnologia.

Porvir: Como o estresse tóxico das telas afeta o desenvolvimento cerebral infantil?

Suzana Herculano-Houzel: Vou começar com os adultos. Para um de nós, o bem-estar depende da sensação de controle sobre a própria vida. Para nos sentirmos no controle, precisamos perceber que temos tempo para agir em prol do que realmente importa. Quando você joga o seu tempo fora, é claro que isso gera uma sensação crescente de estresse, conforme percebe que não tem tempo para fazer as coisas que são importantes para você.

Isso também se aplica às crianças. Se para o adulto não ter tempo já é estressante, para a criança, que também tem suas responsabilidades na escola e precisa aprender a ser cidadão, a percepção de não ter tempo já é um grande estresse. O que vale para o adulto vale para a criança: não se sentir no controle da própria vida e não ter tempo para o que gosta de fazer, como brincar com os amigos, é uma fonte de estresse. 

Porvir: Como as escolas e os responsáveis podem mitigar esses efeitos? Como gerenciar o tempo de uma forma saudável?

Suzana Herculano-Houzel: A falta de tempo se desdobra de várias maneiras. Se você não tem tempo para o que mais gostaria de fazer, terá ainda menos tempo para o que precisa fazer, mas tem que fazer assim mesmo. Vai sofrer do mesmo jeito. E é nesse ponto que se coloca em risco a razão de ser da escola, que é proporcionar à criança a oportunidade de interagir com outras crianças, com outras gerações, com os professores, e aprender a construir conhecimento. Não é justo esperar que a criança tenha o discernimento de saber quando está perdendo o tempo que gostaria de estar fazendo outra coisa. Isso deve ser função dos pais, da família e da escola.

Porvir: Você fez uma metáfora muito interessante em sua palestra sobre os neurônios como peças de Lego. Pode nos falar mais sobre isso e sobre o papel da curiosidade na aprendizagem?

Suzana Herculano-Houzel: A curiosidade começa quando você percebe que existe um problema interessante que poderia ser resolvido. Para notar isso, é necessário ter a capacidade de identificar que há um problema. Mas, além disso, você precisa de tempo e interesse e essa combinação de fatores é fundamental. A habilidade de aprender depende de ter oportunidade e a oportunidade, por sua vez, depende, mais uma vez, de tempo.

Porvir: Como professores podem estimular essa curiosidade?

Suzana Herculano-Houzel: Às vezes, vemos muitas pendências, muitas tarefas que os professores precisam cumprir, várias agendas. Mas é preciso ter esse intervalo. Mais uma vez, estamos falando de tempo aqui. Também entra um outro fator muito importante: é necessário considerar que já existe tempo para ser criativo. Além disso, uma coisa se torna extremamente importante: dar oportunidades adequadas à realidade de cada criança.

Porvir: Quais suas sugestões?

Suzana Herculano-Houzel: Cada criança tem suas capacidades, interesses e habilidades diferentes, e a curiosidade depende dessa combinação de fatores, sendo um deles o interesse da criança. Se ela já começa se sentindo incapaz de fazer algo, o jogo já está contra ela. Portanto, é papel do professor conhecer as habilidades de cada aluno e trabalhar com elas, oferecendo oportunidades com o nível adequado de dificuldade. Não pode ser difícil demais, pois isso é frustrante e o aluno desiste. Também não pode ser fácil demais, porque se for muito fácil, o aluno sente que não vale a pena o esforço, e acaba buscando outra coisa ou nem fazendo a tarefa. Então, é necessário encontrar essa combinação de fatores, o que é papel do professor descobrir para cada aluno.

Porvir: É neste sentido que se encaixa seu conceito de tempo protegido? Ele é essencial na educação, não é?

Suzana Herculano-Houzel: Absolutamente! Para mim, a coisa mais importante que a escola oferece, e isso vale também para a universidade, é o tempo protegido. Esse tempo é essencial para que a criança seja criança, para que o professor seja professor, e para que ambos possam interagir de forma produtiva na transferência e construção de conhecimento.

Não tem como construir conhecimento enquanto você está ocupado resolvendo problemas da sua casa ou outras tarefas. A função da escola é ser um espaço físico onde você pode não só interagir socialmente com outras crianças, com pessoas de várias idades, incluindo os professores, mas também ser o local que oferece esse tempo e espaço protegidos. Ou seja, é um espaço onde você pode, pelo menos durante aquelas horas, se dedicar ao aprendizado e ao desenvolvimento.

Porvir: E, em sua própria experiência escolar, você teve esse “tempo protegido”?

Suzana Herculano-Houzel: Completamente. Eu passei por uma crise existencial, questionando o porquê de ir para a escola, até pensar: ‘Se todo mundo morre no final, por que ir para a escola?’ (risos). Mas, rapidamente, a escola se tornou um local sagrado para mim, onde eu tive a oportunidade de aprender coisas que nunca tinham me ocorrido antes. 

Porvir: Na época em que começou sua carreira, não havia muitas mulheres cientistas. Como isso impactou sua trajetória?

Suzana Herculano-Houzel: Na minha época, a figura de uma mulher na ciência era muito rara. Marie Curie era um exemplo, mas ela era uma exceção. Eu nunca me senti limitada por isso, mas sim, a realidade é que havia poucas mulheres cientistas visíveis, especialmente na neurociência. Eu fui muito alheia a esse fato, sem perceber a falta de representatividade feminina. Mas o importante é que, quando você tem uma vontade forte, você vai atrás do que quer e encontra seu caminho, mesmo que o campo já esteja aberto para mais mulheres.

Porvir: Por fim, o que você diria para as meninas que querem seguir a carreira científica, especialmente na neurociência?

Suzana Herculano-Houzel: Eu diria para elas: sejam curiosas. Leiam, façam perguntas, não tenham medo de incomodar. O importante é reconhecer sua vontade de aprender e buscar as informações que você precisa para seguir o caminho. O Brasil tem uma vantagem comparado a outros países, pois as mulheres têm uma grande representação nas ciências, especialmente nas ciências biomédicas. Isso é maravilhoso porque precisamos de mais mulheres na ciência, e elas precisam ver outras mulheres ocupando esses espaços. Isso inspira e mostra que elas também podem chegar lá.

Fonte: Portal Porvir - Ana Luísa D'Maschio

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