Violência, exclusão, desesperança e solidão crescem nas escolas
Explosão de casos violentos e de sofrimento emocional ocorreu após a pandemia, mostram diferentes estudos. A criação de grupos de apoio entre estudantes, com mediação de professores, é um caminho para melhorar a convivência dentro das escolas
Estudos recentes mostram que a violência, a desesperança, a exclusão e a solidão aumentaram nos últimos anos entre os estudantes. O bullying (intimidação sistemática) é apontado como uma das principais causas de sofrimento emocional. Os levantamentos são do GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral) – que desenvolve linhas de pesquisa na Unesp (Universidade Estadual Paulista) e na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Uma pesquisa coordenada pela professora Luciene Tognetta, da Unesp, realizada em 2022, mostrou que, entre 945.481 estudantes dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio de escolas públicas paulistas, 18% relataram sentir medo frequente de ir à escola, sendo que 8% afirmaram sentir medo constantemente.
Outro projeto de 2024, intitulado “Adole(SER) e Perten(SER): O sofrimento emocional e sua relação com o sentimento de pertencimento escolar em adolescentes”, realizado por Vitória Hellen de Oliveira, também integrante do GEPEM, apurou que, entre 3.276 estudantes do 7º e 9º ano do ensino fundamental, de escolas públicas e privadas, 6% (196 estudantes) relataram pensar em suicídio todos os dias. Em outra pesquisa publicada em 2025, Luciene e o grupo constataram que meninas e pessoas da população LGBTQIA+ se sentem mais excluídas na escola do que meninos e pessoas não LGBTQIA+. Tais dados parecem confirmar o cenário de violências de gênero presentes em nossa sociedade.
Além disso, 18,77% dos adolescentes relataram sentir-se solitários com frequência, e 14,98% disseram sentir-se excluídos. Do total, 24,2% afirmaram que passam tanto tempo diante das telas que se esquecem de realizar outras atividades. Entre os jovens, 42,16% relataram medo frequente de perder pessoas queridas.
Sofrimento emocional atinge vítimas, autores e espectadores de bullying
O sofrimento emocional é significativamente maior entre todos os envolvidos em situações de bullying, sejam autores, alvos ou espectadores, quando comparados a estudantes que não se envolvem diretamente nessas situações. As vítimas apresentam índices seis vezes maiores de sofrimento emocional em relação às não vítimas. Já os autores apresentam índices três vezes maiores, e os espectadores sofrem 3,7 vezes mais do que os que não presenciam essas situações.
Em pesquisas sobre esperança, observou-se que meninas demonstram a falta desse sentimento relacionado ao sofrimento emocional, enquanto entre os meninos predomina a ausência de perspectiva de futuro. “Elas falam sobre tristeza, depressão, solidão. Eles falam que não veem sentido para a vida. Isso talvez revele a tensão que os meninos vivem pela ‘masculinidade’ que lhes é imposta diariamente, não?”, questiona Luciene.
Estudantes que se autodeclararam pretos tiveram a maioria de suas respostas indicando o sentimento de esperança relacionado a aspectos sociomorais (que incluem tanto a dimensão social quanto a moral das relações humanas, especialmente no contexto da convivência, da formação ética e da vida em sociedade). Estudantes brancos demonstraram mais indícios de sofrimento emocional, enquanto estudantes pardos revelaram falta de perspectiva para o futuro.
Pandemia agravou a exclusão e a violência
Essas mudanças são reflexo de transformações nas formas de convivência após a pandemia. “Temos uma diferença nos tipos de problemas de convivência que têm sido manifestados nas escolas hoje: são violências veladas, escondidas, quando vemos já são explosões de raiva, agressões. Muitas, como consequências ou não dessas violências, são formas de sofrimento emocional como sentimentos de exclusão, solidão, desilusão amorosa, tristeza e violências autoprovocadas e ideação suicida. Nossos adolescentes estão, na verdade, feridos”, diz a professora.
As manifestações de violência variam desde indisciplina e incivilidade até situações mais graves. “As manifestações violentas são aquelas que têm uma gravidade em função da intencionalidade, porque colocam a dignidade e a vida do sujeito em jogo”. Alguns exemplos incluem: porte de armas e drogas, agressões físicas, verbais e psicológicas, ameaças, bullying e o cyberbullying. “Precisam de uma ação diferente daquelas tomadas em casos de manifestações perturbadoras da ordem.”
Números revelam explosão de alertas e tentativas de suicídio
Os resultados das pesquisas do GEPEM são reforçados por outros estudos. Um levantamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), baseado em dados do governo federal, mostrou que casos de violência escolar pularam de cerca de 7 mil em 2019 para cerca de 13 mil em 2023, após uma queda de registros em 2020 e 2021, durante a pandemia.
Outro dado preocupante vem dos registros feitos por diretores escolares da rede estadual paulista na plataforma Conviva SP: os alertas de comportamentos que demandavam cuidado passaram de 117 em 2019 para 3.157 em 2023. Foram nove tentativas de suicídio – com sete suicídios – em 2019, em escolas públicas paulistas, contra 325 tentativas – e 67 suicídios – em 2023.
Dados do SUS (Sistema Único de Saúde), de 2024, mostram ainda maiores índices de ansiedade entre crianças e adolescentes do que entre adultos. Além disso, segundo um relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde), de junho de 2025, os adolescentes são os que mais sofrem com a solidão. E aqui novamente as meninas são mais afetadas.
Convivência precisa ser foco central da escola
Em torno do bullying gravitam a exclusão, a solidão, as violências autoprovocadas, as desilusões amorosas e as ideações suicidas. “Essas questões não são vistas, são escondidas aos olhos da autoridade. São problemas muito presentes depois da pandemia, pela complexidade do mundo contemporâneo. Elas têm a ver com os dados que encontramos de solidão, de sentimento de exclusão, de falta de pertencimento, de falta de perspectiva de futuro, e de como esses meninos e meninas não têm sentido esperança para a vida. Isso é muito sério quando pensamos na adolescência e como precisamos ajudá-los”, explica Luciene.
As escolas e os professores precisam fazer uma nova leitura de atitudes que podem ser vistas como “desinteresse, vagabundagem ou problemas que dependem de soluções medicamentosas”.
“Esses problemas precisam ser cuidados pela escola sob a perspectiva da qualidade da convivência, que é uma das mais bonitas e humanas. Precisamos de um olhar de acolhida”, afirma a pesquisadora, que recomenda a criação de espaços de bem-estar.
“Eles precisam sentir que a escola é um lugar em que podem ajudar a planejar, pensar nas regras, participar, ser desafiados, sorrir, brincar, jogar com seus pares. Não ter apenas uma metodologia que reprima, em que tenham vontade de ir embora. Essa é a maior necessidade dos tempos atuais.”
Segundo Luciene, a falta de uma política de formação dos professores é uma das principais dificuldades para a aplicação da Lei 14.811, que protege crianças e adolescentes na escola e criminaliza o bullying e o cyberbullying.
“Temos a lei, mas não sabemos como colocá-la em vigor. Na escola, a lei precisa ser implementada metodologicamente, com formação para gestores e professores. A função da escola não é criminalizar, mas formar. Dessa maneira, na escola, é preciso que o autor do bullying tenha que reparar seu erro, a vítima não seja revitimizada, mas empoderada e fortalecida, e os espectadores possam se indignar e se instrumentalizar para proteger os alvos e a si próprios num pacto por uma escola sem bullying.”
Protagonismo do estudante e cultura do cuidado
Os jovens precisam vivenciar a sensação de pertencimento, de acordo com o psicólogo, psicanalista, educador e pesquisador André Pereira, da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara. “Podemos direcionar ações entre pares para fortalecer vínculos em que o valor da solidariedade promova o viver em comunidade e desmistifique a ideia de que a educação vem de casa. Na cosmologia africana e dos povos originários, todos são responsáveis por cuidar dos meninos e meninas.”
André, que atua na coordenação do Programa Senac de Convivência na Escola, acredita que, uma vez que a violência atinge a sociedade, ela também se manifestará dentro da escola. Por isso, defende mecanismos formativos, e não punitivos, para enfrentar esse cenário. “O compromisso da escola e dos educadores é investir na transformação, com medidas que promovam uma visão crítica sobre a nossa condição enquanto comunidade social”. Toda a comunidade escolar deve participar, incluindo as famílias.
As formas de violência mais desafiadoras na escola, para o pesquisador, são as estruturais, repetidas em vários ambientes sociais: misoginia, racismo, LGBTfobia, aporofobia (aversão aos pobres e à pobreza) e bullying.
O pesquisador relata um caso de manifestação de ódio na escola, resolvido com a ajuda dos próprios estudantes. Eles mostraram aos educadores as mensagens que circulavam em grupos virtuais. A solução envolveu docentes, coordenadores, direção, famílias, órgãos de proteção social e até de segurança pública. “Após toda a mobilização, fica uma escola que precisa muito ser acolhida e reinvestida de cuidado e apoio, demandando um plano de ação em favor de restabelecer a segurança que não é a policial, mas de comprometimento de todos”, diz o psicólogo.
A responsabilização dos atos precisa acontecer sem um clima punitivo ou de vigilância, que conte apenas com decisões autoritárias de adultos. É preciso investir em modelos de participação, segundo Pereira. “Mobilizar atividades que dialoguem com as vivências fora da escola, para ampliar debates que possam refletir sobre como nascem as violências e como podemos evitá-las, gerando uma preocupação de cuidado mútuo, tem surtido efeitos positivos nas relações entre pares.”
Sistema de Apoio entre Iguais transforma relações escolares
No Centro de Ensino Médio 01 do Guará (DF), a coordenadora pedagógica Márcia Delgado e a professora Rita de Cássia Rezende lideram o projeto ”Vem Comigo”, que prepara professores para atuarem como tutores e mediadores de rodas de conversa e assembleias escolares.
Esses educadores atuam com os estudantes da Comunidade de Cuidado e Apoio, grupo de jovens com foco no protagonismo estudantil e na convivência positiva. Eles integram a Rede de Comunidades de Cuidado e Apoio entre Estudantes na plataforma SomosContraoBullying, que reúne escolas no país acompanhadas pelos pesquisadores do GEPEM.
“Os estudantes passam por uma formação inicial sobre valores, escuta ativa, comunicação não violenta e fases da ajuda em situações de incivilidade, exclusão, bullying, cyberbullying e outros conflitos. Eles agem de forma individual ou em grupo, e são orientados a encaminhar os casos aos professores tutores ou especialistas da escola, formando uma rede de apoio”, explica Márcia.
Segundo a coordenadora, muitos autores de bullying são estudantes que já foram vítimas e vivem em lares violentos. “Tivemos um caso de violência com arma branca há alguns anos. Não estávamos preparados para isso. Temos formação, conhecimento, especialização, mas sentimos a frustração de não saber o que fazer em situações desse tipo.”
Desde a criação da comunidade de apoio, a escola passou a lidar melhor com situações difíceis. “Quando você cria espaço, a pessoa se sente pertencente. Pensa: ‘me escutam, sou visto’. O respeito passa a ser via de mão dupla, não algo unilateral e imposto, mas algo conquistado.”
Hoje, os estudantes procuram diretamente a coordenação e a direção para relatar problemas, criticar e sugerir. “Vivemos a essência da escola democrática”, diz Márcia. Casos de preconceito, bullying e cyberbullying ainda ocorrem, mas agora são mediados, e os registros passaram a ser acompanhados com mais atenção. “Antes me chamavam de paz e amor. Hoje veem a importância disso e como a escola mudou. Não dá para ter processo de ensino-aprendizagem sem respeito. Mudanças levam tempo, mas quando acontecem, são transformadoras”, finaliza.
Fonte: Portal Porvir - Fernanda Nogueira